quarta-feira, 14 de novembro de 2012

QUANDO AS CASAS ERAM HOSPEDARIAS...






Qual a importância das metáforas domésticas em torno das identidades e das memórias do passado, enquanto instrumentos fundamentais para o fabrico de uma auto-representação da casa, do grupo doméstico e da linhagem (AUGÉ, 1997; MATOS RODRIGUES, 2011). Expressões, discursos, linguagens, numa palavra códigos simbólicos de representação cultural, fundamentais num relacionamento entre hóspede e anfitrião desde os tempos primordiais que configuram e estruturam as relações sociais e simbólicas da hospitalidade doméstica.
 Existe aqui, uma clara noção de reciprocidade e de troca (MAUSS:1988;MATOS RODRIGUES:1994), que está para além do negócio e do valor de mercado. No fundo, é a construção de um jogo social que faz o apelo a uma cultura da hospitalidade que transcende a ideologia do produto turístico e se integra nos valores da cultura e do património, partilhados sem drama nem mercado.
 De um lado, os anfitriões (hospedeiro), aqueles que dão a hospitalidade e do outro, os hóspedes[3], aqueles que recebem a hospitalidade. Claro que estamos entre uma hospitalidade doméstica e comercial, mas que se quer afirmar como uma hospitalidade cultural com ou sem metáforas domésticas. Sem dúvida, que neste jogo, o desempenho da hospitalidade é frágil e precário. Para LASHLEY (2004: 5 e ss.) a hospitalidade «pode ser concebida como um conjunto de comportamentos originários da própria base da sociedade. A partilha e a troca dos frutos do trabalho, junto com a mutualidade e a reciprocidade, associadas originalmente à caça e à coleta de alimentos, são a essência da organização coletiva e do senso de comunidade. Embora evoluções posteriores possam se preocupar com o medo em relação aos forasteiros e a necessidade de contê-los, a hospitalidade envolve, originalmente, mutualidade e troca e, por meio dessas, sentimentos de altruísmo e beneficência»[4].

 Segundo o Dicionário da Língua Portuguesa[5], hospitalidade, tem a sua origem etimológica na palavra latina «hospitalitate», significa ato de hospedar, também relaciona-se com a qualidade de hospitaleiro, isto é, do que recebe ou acolhe pessoas de uma forma agradável e afetuosa, por último também nos aparece associada a uma espécie de acolhimento afetuoso. Evidentemente, que a função básica da hospitalidade é estabelecer um relacionamento ou promover um relacionamento, no fundo, é uma espécie de processo de troca de produtos e/ou serviços entre aqueles que dão hospitalidade (os anfitriões) e aqueles que a recebem (os hospedes). Estamos no mundo da partilha, da troca e da oferta; partilha-se casa, memória, património familiar e mesa, tudo isto, integrado num cerimonial que obedece a uma espécie de arqueologia da etiqueta e das boas maneiras.

Tom Selwyn (2004: 26 e ss.) fala-nos sobre a organização estrutural da hospitalidade, a partir de uma visão antropológica, ilustrando este propósito com exemplos etnográficos e observações acerca das estruturas social, ritual e cognitiva. O autor sobre as estruturas e as funções da hospitalidade considera que a hospitalidade transforma: estranhos em conhecidos, inimigos em amigos, amigos em melhores amigos, forasteiros em pessoas íntimas, não-parentes em parentes. Esses princípios ganham expressão em descrições etnográficas de uma grande variedade de sistemas sociais. Selwyn dá como exemplo a festa e a sua relação com a hospitalidade, fenómenos sociais totais que contribuem para consolidar vínculos entre os grupos de parentesco, e os turistas com quem estabelecem uma relação muito própria de partilha[6]. Aliás, nos contactos com as Casas de Turismo, e quando questionados sobre as vantagens deste tipo de Turismo de Habitação, a primeira coisa que salta é a ideia de que existe uma vantagem hospedar famílias neste tipo de oferta turística, pela possibilidade de se criarem e consolidarem novas redes de amizade e de partilha.

O hóspede tem deste modo um estatuto especial, de maior relevância dentro da Casa que o recebe e com a qual interage, partilhando saberes, afetos, memórias e vivências. Em resumo, não é um turista, mas um hóspede. Lembro a visita a uma destas casas de turismo e a senhora da casa, nos afirmar que era muito ingrato receber os turistas que se tinham perdido durante o trajeto Porto – Baião – Douro. E chegavam à casa às tantas da madrugada. Situação demonstrativa que a relação entre as Casas de Turismo e os Grandes Hotéis é bem diferenciado no tratamento personalizado e intimista das casas de turismo rural. O autor faz referências aos trabalhos de Evans-Pritchard (1940), de Gellner e Waternury (1977) e de Brown (1980) sobre a natureza e a importância da hospitalidade e da festa na organização das estruturas do parentesco dos povos da Nova Guiné, da Amazônia, e do Nordeste da Africa. Nestes casos, a festa e a hospitalidade expressam, consolidam e / ou estabelecem vínculos entre os grupos de parentesco, e são parte integrante dos processos de desenhar e redesenhar os parâmetros das alianças entre tais grupos.

Ainda sobre a hospitalidade e suas funções e representações simbólicas, Selwyn (2004: 29) cita Heal para nos dar a conhecer os cinco princípios que têm orientado a hospitalidade inglesa. E dos quais salientamos os seguintes: i.º)a ideia de que o relacionamento entre anfitrião e hóspede é um relacionamento que se baseia na natureza da vida social; ii.º) a natureza sagrada do hóspede, fazendo alusões à honra e ao status que um hóspede pode trazer para o hospedeiro; iii.º) a ideia de que a hospitalidade é nobre; iv.º) a ideia de que existe um altruísmo na hospitalidade o que lhe confere um grau de excecionalidade; e por fim o v.º) a hospitalidade e os relacionamentos por ela criados são tão importantes como aqueles que são produzidos pelo mercado. O autor faz breves referências à hospitalidade como dever moral, integrando-a na tradição judaico-cristã, salientando a importância do tema nos sermões a partir do século XVII. A parenética vai buscar essa fundamentação e valorização às origens com a citação de passagens quer do Antigo e Novo Testamento. Por exemplo, no Êxodo (22:21): “Não maltratarás o estrangeiro”, como uma das origens bíblicas da hospitalidade. Podemos assinalar várias referências bíblicas à hospitalidade no Antigo Testamento: Gênesis, Êxodo, Juízes, Livro de Jó; e no Novo Testamento, mais propriamente nos Livros: Atos dos Apóstolos e Epístola aos Romanos. Ao longo dos tempos a hospitalidade foi sendo associada à partilha de alojamento, mas também à partilha de alimentos e acolhimento, e onde a hospitalidade aparece associada aos valores da honra e do status, ao carácter quase sagrado do hóspede e do anfitrião.

Em relação ao acolhimento e dever de dar hospitalidade, na Regra de S. Bento, mais propriamente no Capítulo LII: Do Acolhimento dos hóspedes, considera-se que “todos os hóspedes que se apresentam (no Mosteiro) sejam recebidos como se fosse o próprio Cristo, pois Ele dirá (um dia): fui hóspede, e recebeste-me”. Estamos numa visão cristã que vê os hóspedes à imagem do próprio Cristo. Mais, no capitulo LXI. Como se devem receber os monges estranhos, a regra explica de forma muito simples e imediata que todo aquele que vem por bem será bem recebido e pelo tempo que o desejar[7]. Até que ponto estas práticas e ensinamentos se foram difundindo pela sociedade e pela cultura até aos nossos dias. Uma coisa é certa que a hospitalidade ainda é hoje, um momento de exaltação de valores culturais e sociais, que associam partilha, convivialidade, fraternidade entre aqueles que chegam e aqueles que recebem os seus hóspedes nas suas casas de turismo. Geralmente, aqueles que concedem hospitalidade, isto é, os anfitriões, fazem questão de dar e de partilhar com os seus hóspedes tudo aquilo que faz parte do sustento da sua família e da sua casa.

A casa transforma-se numa espécie de santuário, onde se deve zelar pela segurança e bem-estar do hóspede. Num contexto de informalidade e sociabilidade a Casa de Turismo, classifica e categoriza o turista como um hóspede que deve ser bem tratado e integrado de forma autêntica na estrutura familiar que dá hospedagem a quem chega. Evidentemente, que aqui levanta-se a questão, se todas as Casas de Turismo de Habitação se integram e enquadram nesta filosofia de hospitalidade. De acordo com o nosso estudo na região nem todas estão nesta situação, e nem todas se integram numa hospitalidade de partilha e de comunhão. Infelizmente, em algumas pondera o lado comercial e económico da atividade turística, onde a hospitalidade é uma espécie de cosmética e de eufemismo publicitário. Onde as relações entre hospedeiro e hóspede são essencialmente comerciais e distantes, próprias de um hospedeiro comercial que presta um serviço em troca de um valor que é cobrado e pago pelo turista. O problema é que a hospitalidade Industrial desenvolve-se num local que não é um lar (uma Casa de Família), e os convidados não são escolhidos e eles próprios não procuram um ambiente familiar, restrito, intimista e ruralizante. Estes turistas valorizam as megas estruturas turísticas, anónimas e globalizantes, onde o turista é uma entidade sem rosto e sem nome.

Na região do Douro a questão coloca-se pelo facto de alguma da oferta turística de nicho de pequena escala (Turismo de Habitação) não valorizar a hospitalidade em contextos de casa, família e comunidade, onde o hóspede é integrado numa espécie de contentor da felicidade, partilhando o mesmo espaço e as mesmas memórias com o anfitrião e respectiva família. Algumas Casas de Turismo, são uma espécie de contentores de cosmética, onde a colagem e o fachadismo pretendem reconstruir um ambiente de casa familiar, através de uma manipulação de memórias fabricadas pela engenharia turística, que idealiza parques temáticos em analogia com os Solares Familiares de antanho.

A atividade turística é assim, uma arte de enganar, com a construção de espaços performativos que pretendem conduzir o turista / hóspede para um tempo que é ele em si uma fabricação temática de ilusão e de sonho. Numa plasticidade estética redutora e massificante na forma e no conteúdo. Claro que aqui, também se tem como principal objetivo atender bem os seus hóspedes, denotando-se um interesse pela autêntica felicidade, cobrando um preço razoável e justo, simulando uma interação social onde as relações se querem de amizade entre hospedeiro e hóspede. No fundo é esta a essência do produto turístico, dar e simular um mundo onde é possível a felicidade, por muito efémera que ela seja, no tempo e no espaço. Num contexto diferenciado, mas não estranho ao tema do turismo em Casas de Família, apetece-nos citar Bachelard[8] sobre as topologias da felicidade, aplicadas aqui, ao nicho turístico de matriz rural ou ecológica. Essa procura pelo mundo da efabulação da casa útero, que abriga e protege[9]. 



[1] Hospedagem, segundo o Dicionário da Língua Portugesa, é o ato ou efeito de hospedar ou hospedar-se; casa que recebe hóspedes, mediante pagamento; hospedaria; bom acolhimento; hospitalidade (De hospedar+agem).
[2] Segundo Manuel Delgado em El Espacio Público Como Ideología. Madrid, Catarata, 2011, págs. 58 e ss., a perspectiva interaccionista – como também acontece com a etnometodologia, as teorias da conversação e outras variáveis como o construccionismo cognitivista – trabalham a partir de um pressuposto troncal que outorga aos intervenientes em cada encontro a capacidade de determinar ou tentar determinar o curso da mesma ação e o que porventura possa acontecer. Claro que esta perspectiva não nega a importância de alguns determinantes estruturais, tais como os que derivam da classe, da raça e do género, ou de qualquer outra forma de jerarquização social -, que tenham um papel importante nas transações comunicacionais. Os interaccionistas vão permitir distinguir entre contexto estrutural e contexto negocial. Manuel Delgado (op. cit., 2011, 59) afirma que «El contexto estructural pesa sobre el de la negociación, pero éste remite a condiciones y proppropriedades que son específicas de la própria interacción y que intervienen decisivamente en su desarrollo. Es tal distinción la que Goffman no reconocería como pertinente, puesto que la autonomia de la interacción respecto de la estructura social en que se produce es una pura ficción, en tanto presume una improbable capacidade de los seres humanos  para superar o incluso vencer las constricciones ambientales que les determinan, desde las que han ingressado en la interacción y que la han definido, y que pueden ocultar o dissimular, pero que en ningún momento les abandonan. En efecto, para Goffman, en cada negociación los indivíduos trasladan y encarnan los discursos y los esquemas de actuación próprios del lugar del organigrama social desde el que y al servicio del cual gestionan a cada momento su presentación ante los demás. No contexto de turismo de habitação, o hóspede estabelece com o anfitrião uma interacção ou jogo de partilha e de afirmação de identidades singulares em contexto de negociação permanente, o que lhes faculta ( ao hóspede e aos anfitrião) a possibilidade de uma boa convivência. Superando desta forma as barreiras estigmatizantes entre o estranho que invade um lugar de destino transitório e de forte plasticidade: tradição, glamour e recriação. Sobre as questões do espaço social estruturado Bourdieu (1991:241) considera por exemplo que não existem sociedades anónimas, isto é, formas de vinculo social cujos componentes humanos sejam totalmente estranhos uns aos outros.   
[3] Hóspede, segundo o Dicionário da Língua Portuguesa, pessoa que se aloja temporariamente em casa alheia ou em hospedaria; estrangeiro que viaja num país; peregrino, do latim hospite.
[4] Cfr. Conrad LASHLEY (2004) “Para um entendimento teórico” in Em Busca da Hospitalidade. Perspectivas Para Um Mundo Globalizado (Conrad LASHLEY; Alison MORRISON, Orgs.). S. Paulo, Manole, 1-24.
[5] Cfr. Dicionário da Língua Portuguesa. Porto, Porto Editora, 2008:905.
[6] Cfr. Tom SELWYN (2004) “Uma antropologia da hospitalidade” in EM BUSCA DA HOSPITALIDADE. PERSPECTIVAS PARA UM MUNDO GLOBALIZADO ( Conrad LASHLEY; Alison MORRISON, Coord.). São Paulo, Edições Manole, pp.25 – 52.
[7] Por exemplo «Se um monge estranho, vindo de regiões longínquas, se apresentar no mosteiro e nele quiser habitar como hóspede, se está satisfeito com o modo de viver que nele encontra e não perturba o mosteiro com as suas exigências, antes, nele se depara, seja recebido pelo tempo que quiser»; bem como no Capitulo LII, a mesma regra considera e determina que «Diante de todos os hóspedes, tanto à chegada como à partida, inclinem a cabeça e, postrado todo o corpo por terra, neles adorem a Cristo que na pessoa deles é recebido. O superior quebre o jejum, em atenção ao hóspede, excepto se for dia de jejum dos principais, que se não possa quebrar. O abade deite água às mãos dos hóspedes. E, tanto ele como toda a comunidade, a todos lavem os pés». Assim, a hospitalidade monástica prefigura-se uma hospitalidade que se encontra entre duas categorias: a hospitalidade privada e comercial, sem escamotear a sua generosidade cristã. Onde o anfitrião era uma instituição religiosa e não uma pessoa singular.
[8] Cfr. Gaston BACHELARD (1989) A Poética do Espaço. S. Paulo, Martins Fontes Editora.
[9] Ver também Fernando Matos RODRIGUES (2011) Antropologia do Espaço Doméstico. Um Estudo de Caso. Porto, Edições Afrontamento. Sobre as redes socioantropologicas das casas e familias da Vila de Arouca.

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